Reportagem apurou histórico dos garotos. Não estudavam, tinham envolvimento com drogas, passagens na polícia e vêm de famílias desestruturadas
Repórter: Redação O Olho
Textos e vídeo: Orlando Berti*. Fotos: João Brito Jr**, enviados a Castelo do Piauí
O que levou jovens adolescentes de uma pequena e quase pacata cidade do interior do Piauí, bem franzinos, paupérrimos e com pouca idade a raptar, ameaçar, violentar coletivamente quatro garotas (todas menores de idade) e ainda as amarrar e as jogar de um desfiladeiro, com intuito de mata-las? O que explica a atitude de depois de cometerem tudo isso, voltarem normalmente para casa como se nada tivesse ocorrido? Por que fazer isso com alguém? Por que tanta frieza e crueldade?
O caso, ocorrido em Castelo do Piauí (que tem aproximadamente 18.400 habitantes, localizada no Sertão Norte do estado, a 190 quilômetros de Teresina) tem abalado parte do Brasil e ganhado repercussão internacional. A acusação da autoria de tamanha atrocidade recai sobre os adolescentes: B.F.O, 15 anos, G.V.S., 17 anos, I.V.I, 15 anos, e J.S.R, 16 anos. Eles são acusados de raptar, estuprar e tentar matar quatro meninas (duas de 15, uma de 16 e uma de 17 anos) no final da tarde de quarta-feira da semana passada, 27 de maio.
Os quatro garotos, assim como as quatro vítimas, são moradores da pequena e pobre Castelo. O crime imputado a eles e ao desempregado Adão José de Sousa, 40 anos (também preso), gerou revolta na cidade, que ainda vive clima de luto. Todas as quatro vítimas continuam internadas em estado delicado.
Eles são tidos como inimigos número um não só no município, mas também em quase todo o Piauí. Diariamente manifestações exigindo punição severa e até execução sumária são alimentadas em redes sociais virtuais e também em rodas de conversa.
Veja vídeo do local do crime, onde as garotas foram ameaçadas e depois jogadas de desfiladeiro:
Os garotos, tidos hoje como os "mais odiados" do estado inspiram a nova rodada de discussões nacionais sobre o debate para a redução da maioridade penal. Os quatro, presos horas depois do crime, foram transferidos de Castelo do Piauí, sob ameaça de linchamento. Durante a transferência chegaram a levar murros e safanões por parte de populares. Atualmente estão encarcerados em uma das duas unidades prisionais para menores de idade da capital, Teresina. Eles recebem vigilância constante. O maior de idade está na Penitenciária de Altos em ala de isolamento.
A reportagem de O Olho foi apurar quem são esses garotos, como eles viviam, quem são suas famílias, o que elas pensam sobre a monstruosidade que vitimou as quatro garotas. Descobriu muitas histórias e revela, em uma série de duas reportagens, que o problema está mais próximo de acontecer em proporções e dimensões maiores em vários rincões do Piauí. É uma epidemia quase nacional de jovens atolados nas drogas, na criminalidade, sem estudar, sem saber ler e escrever e sem perspectiva de vida.
Os quatro garotos, apesar de morarem em pontos distintos da cidade, não terem grau de parentesco e terem crescido em lugares diferentes, têm várias características em comum.
Eles não estudavam, tendo vários problemas nas escolas que já frequentaram, com histórico de abandono da vida de aulas. São também semi-analfabetos, moram em lugares periféricos em situações de miséria, têm famílias desestruturadas, com histórias de loucuras, depressão, abusos, abandono, revolta e descontrole.
Os quatro também têm várias passagens pela polícia (com um deles com quase uma centena de cconduções à delegacia local), além de serem usuários de drogas e assíduos frequentadores de lugares de venda de entorpecentes na cidade. Dois deles, inclusive, já tinham passagens pelo CEM (Centro Educacional Masculino), lugar de encarceramento de menores infratores do estado, em Teresina.
Todos os garotos não têm advogados - nenhum da cidade aceita assumir o caso - e ainda não foram visitados por nenhum dos parentes.
As famílias estão com medo e duas delas já foram ameaçadas, uma, inclusive, de expulsão da cidade. Uma das famílias, no início do ano, já tinha sido expulsa do bairro em que morava por conta das ações criminosas de um dos menores.
Confira as histórias de cada um dos acusados de envolvimento no caso:
HISTÓRIA DE TENTATIVAS DE ESTUPROS NA PRÓPRIA CASA
Na esquina de uma das ruas sem pavimentação do bairro Reffsa, na extrema periferia de Castelo do Piauí, moram a dona de casa Elisabeth Vieira da Silva, 35 anos, e sua mãe, a aposentada Francisca Vieira da Silva, 60 anos, proprietária do casebre construído há mais de 30 anos. Elas são, respectivamente, mãe e avó do adolescente mais velho, acusado pelo crime que abalou o Piauí, G.V.S., 17 anos.
A residência está, em linha reta, a menos de 500 metros do morro do Garrote (local em que ocorreu a barbárie). Da porta da casa observa-se o lugar exato em que as garotas foram violentadas.
Na rústica residência, que tem como principal eletrodoméstico uma televisão do século passado, poltronas com mais de 20 anos de uso e muita simplicidade, além da mãe, da avó e do adolescente, ainda moram mais cinco outras pessoas: duas filhas gêmeas de seis anos, um filho de nove anos, um de 12 anos e um de 19 anos, que sofre sérios problemas mentais.
Toda essa prole sobrevive do auxílio do Governo Federal, o Bolsa Família, e da aposentadoria de um salário mínimo do jovem deficiente. Vez por outra aparece na residência o marido de Elizabeth, padrasto de G.V.S.. O esposo passa vários dias fora de casa. A dona de casa diz que o marido é alcóolatra e muito violento. Ela está grávida de três meses.
G.V.S. estudou apenas até a 6ª série, mas mal sabe ler. Sua escrita não deixa muita diferença a crianças com menos de sete anos de idade. Fazia anos que estava afastado da escola. Já tinha frequentado vários colégios da cidade. Tantas mudanças era devido ao fato de ser considerado um aluno violento e colecionar um histórico de expulsões, tido por boa parte dos educadores de Castelo do Piauí como um “rapaz problema”.
Os parentes dizem que faz tanto tempo que ele deixou de estudar que nem se recordam mais quando foi que abandonou os estudos. Só se lembram da última expulsão, da escola Valdemar Sá, quando G.V.S. foi às vias de fato com um colega. Os dois rapazes, nas palavras da mãe, quase se mataram de tanta agressão física.
Perguntada se acha que o filho tem algo a ver com o crime, Elisabeth foi categórica em afirmar que tem dúvidas. A revelação dela, para tentar inocentar o filho, é porque o mesmo era contra o irmão, deficiente mental, tentar abusar sexualmente as irmãs mais novas. “O mais velho, que é fraco do juízo tentava sempre bolinar com as meninas e ele era muito contra isso. Como é que ia estuprar alguém se ele não permitia o irmão fazer isso com as irmãs e sempre brigava quando o irmão queria fazer alguma coisa”, questionou a mãe.
PASSAGEM PELO “CEM” E PERDA DA CONTA DE VEZES QUE ESTEVE PRESO
Elizabeth Silva assume que o filho tem várias passagens pela polícia, inclusive internação no CEM, em Teresina. “Ele começou com 13 anos. A ficha é grande. Perdi as contas do tanto de vez que ele foi preso. Em Teresina ele passou um mês e 45 dias preso. Ele roubou umas joias. Não andava armado”, falou. A mãe também assume que sabia que o filho era usuário de drogas. “Mas era maconha”, tentou justificar.
Depois de novamente ser perguntada se acreditava que o filho realmente estaria ou não envolvido no caso, ela respondeu não e sim. Não (na opinião dela), devido ao fato do adolescente ser contra o irmão nas tentativas de violência sexual contra as irmãs, e sim porque no dia do crime ele estava "meio estranho" e teria voltado para casa "desconfiado".
Elizabeth Silva conta que em 27 de maio, como quase todos os dias, G.V.S. passou o dia sem fazer nada e “na rua”. Ela diz ter ido ao centro deixar as duas filhas menores na escola e depois aproveitou para fazer compras e esperar as meninas de volta. A mãe do menor diz ter visto o filho de novo por volta das 17h. Depois ele teria saído de casa e só retornado às 23h, drogado e desconfiado.
“Tinha muita movimentação de pessoas e de polícia na rua (nesse momento a cidade se desesperava para procurar as meninas, ainda desaparecidas). Ele apontou para o morro e disse que talvez tinham matado alguém lá”, revelou a mãe. Esse é um detalhe que pode ajudar a incriminar o jovem e provar que a intenção dos cinco envolvidos era realmente matar as garotas após rapta-las, estupra-las e amarra-las.
Elizabeth Silva conta que chegou a ir ao hospital de Castelo do Piauí ver a movimentação do caso. Mal sabia que horas depois o filho seria preso por aquele crime. Policiais chegaram a passar pelo adolescente durante aquela noite, mas ele ainda não tinha sido apontado pelos comparsas.
O adolescente foi o último, dos quatro, a ser detido. Ele foi encontrado dormindo em casa no meio da madrugada. No início tentou negar, mas, minutos depois, os policiais já voltaram com ele, algemado, dando detalhes do ocorrido.
“Eu ainda não fui ver ele em Teresina. E nem quero. Não aguento. Estou com problema de pressão e não posso tomar remédio porque estou grávida. Se ele fez tem de pagar. Se for culpado não quero mais ele como filho, porque a população não vai esquecer. Se soltar o povo mata ele. Já falaram isso para mim”, revelou Elizabeth Silva, em tom de tristeza. Ela conta que a família tem recebido ameaças para deixar a cidade.
“O povo vira as costas para mim. Eu não sou culpada. Não botei estuprador no mundo. Não nasce escrito que ele seria assim”, finalizou.
Quando a reportagem estava saindo da residência, o padrasto de G.V.S. estava chegando na casa. Estava visivelmente alterado e iniciou uma discussão com a mãe do adolescente.
COMEÇOU A ROUBAR DESDE OS OITO ANOS DE IDADE
Era quase 14h30. Fazia mais de 40ºC. Um calor infernal. No pequeno galpão, transformado em casa de três cômodos, mora o adolescente I.V.I, 15 anos. Na residência estava o marceneiro aposentado Manoel Izaias, 63 anos, pai do menor, e os dois irmãos mais novos. Naquele horário o almoço ainda estava sendo preparado. Em uma única panela de pressão estavam sendo cozidas unhas de boi. As duas crianças, irmãs dele (M., três anos, e J., dois anos) estavam inquietas. A fome e a curiosidade da visita dos repórteres era notória.
I.V.I. é o segundo filho. Há um mais velho, que tem 16 anos e não mora com os pais. Vive, como o próprio Manuel Izaias destacou, “amancebado com uma menina”.
A casa estava muito bagunçada. Havia muita sujeira dividindo espaço com a simplicidade do lugar. As paredes estavam riscadas e as camas desarrumadas. O único utensílio que parecia ter menos de cinco anos era uma geladeira. Não havia guarda-roupas. Uma mesa, cheia de malas velhas, fazia as vezes de lugar em que eram colocados as roupas dos moradores da casa. O lugar não tinha porta. A rua é dividida por um portão, que é fechado com dois panos que servem de cortinas.
Os pais e as crianças dormem em duas camas, todas separadas do que é a sala por um balcão (parece que antes o lugar era um bar). I.V.I. dormia em uma rede, também no pequeno salão. Ele foi preso em casa enquanto descansava na rede (que ainda continua no mesmo lugar e armada, como se esperasse a volta do dono). Pelo humor do pai, sua presença não está fazendo falta.
A residência em que moram, na região de limite entre o Centro e a periferia de Castelo do Piauí, foi cedida pela irmã do pai do garoto. Ele conta, constrangido, que até o início do ano moravam no bairro Cohab, mas, por causa de série de crimes cometidos por I.V.I. terminaram expulsos da região.
A família de I.V.I. vive da aposentadoria do pai do garoto, que é inválido e toma remédios controlados, e do Bolsa Família. São sustentados por menos de R$ 1 mil mensais.
O garoto nasceu em São Paulo. Veio para Castelo do Piauí aos quatro anos de idade. Ele só recebeu seu primeiro documento de identidade com mais de dois anos de vida.
I.V.I. completou 15 anos no 1º dia deste ano. Ele não teve festa com a família (a última – como destacado na foto – foi aos 12 anos – com direito a bolo e refrigerantes, patrocinados pela madrinha). O aniversário de debut foi comemorado regrado a muita droga em uma boca de fumo da região.
Diariamente o rapaz, tido como o mais frio e o com mais passagens pela polícia dos quatro menores envolvidos no caso das garotas, usava crack. Para alimentar o vício roubava, furtava e atacava vítimas. Não escolhia idade, nem lugar. Era contumaz corredor. Já tinha avançado do cargo de tomador de celulares e produtos para abordador de pessoas usando facas e facões.
Sob encomenda, furtava motos e as levava para o vizinho município de Juazeiro do Piauí. O esquema rendia algumas pedras de crack para sustentar o vício.
Em um desses crimes, perseguido por policiais, se acidentou em uma moto. Levou quase 40 pontos na cabeça; sofreu várias raladuras no corpo, mas não deixava de roubar.
A foto dele divulgada em redes sociais, que está com uma espécie de penteado moicano (mas ao contrário) não é um estilo, mas a raspagem capilar por causa da cicatrização dos pontos depois do acidente.
O currículo de I.V.I. é estendido por quase cem passagens pela delegacia de Castelo do Piauí. Somente no ano passado e este ano ele coleciona nove processos já em tramitação na Justiça.
Segundo a Polícia Civil de Castelo do Piauí, fora os seus últimos crimes que terminaram o tornando famoso, semana passada ele espancou e roubou o comerciante Joaquim Laurentino de Oliveira. Também segundo a polícia, esse assalto foi feito em parceria com o adolescente B.F.O., 15 anos, também preso sob acusação da barbárie contra as estudantes. No dia 27 de maio, o mesmo dia do crime de estupro coletivo, I.V.I. é acusado de ter roubado uma moto no período da manhã.
“Ele aprontava praticamente todo dia. Era o terror da cidade”, revelou um dos policiais civis de Castelo do Piauí, dizendo que somente ele já tinha prendido I.V.I. mais de 20 vezes.
O pai do garoto diz que I.V.I. começou a realizar roubos desde os oito anos de idade. De lá nunca mais parou de cometer crimes.
“Ele odiava a mãe”, revelou Manoel Izaias. I.V.I., por várias vezes, teria tentado (e conseguido) agredir a própria genitora. Em compensação o pai disse que o menino nunca tinha levado uma surra caseira. “Só apanhou da polícia”. O motivo de tanto ódio era porque a dona de casa Patrícia Visgueira Izaias, 38 anos, o queria sempre na escola. “Esse ano ele foi matriculado e ficou três dias no Colégio Osmarina. Nunca mais foi lá”, destacou o pai. “Para ele nada acontecia. Não se importava”. I.V.I. estudou até a terceira série. Sua assinatura nos inquéritos e processos judiciais constatam que ele mal sabe escrever: desenhava o nome.
“Ele só aparecia aqui em casa para comer, banhar e dormir. Passava o dia na rua”, revelou o pai que revela saber que o filho é usuário de drogas pesadas. “Na outra casa ele tentou levar drogas para lá. Eu não aceitei”, confessou o pai de I.V.I.
Nem a própria casa escapava. O garoto, segundo o próprio pai, já tinha roubado três facões, batedeira e aparelhos celulares. Outra prática de I.V.I. era “sequestrar” o celular da mãe. O crime consistia no garoto “sumir” com o aparelho e dizer que só devolvia se dessem dinheiro para ele. “Ele recebia o dinheiro, geralmente R$ 50, e ainda sumia com o aparelho. Ia tudo para a droga”, disse, envergonhado o pai do menino.
JÁ TENTOU MATAR ATÉ POLICIAL
Um dos casos que transformou I.V.I. em um dos bandidos mais temidos de Castelo do Piauí foi quando ele tentou matar um dos policiais militares da cidade. O PM tinha ido prendê-lo. Para não ser levado o adolescente atacou o policial com uma faca. O crime só não foi consolidado porque outros policiais, apontando armas para o adolescente, o fizeram desistir do intuito.
“Ele tinha coragem de fazer isso. Mais cedo ou mais tarde ia aprontar mesmo”, revelou um dos PMs que estava de plantão no Grupamento de Policiamento Militar da cidade. “Olha só a cidade como está tranquila”, refletiu.
I.V.I. já esteve no CEM, em Teresina, duas vezes. O juiz da cidade preparava o terceiro pedido para esta semana. Voltou novamente agora pelos crimes de estupro e tentativa de homicídio.
Desde a última prisão na capital do Piauí, terminada em fevereiro deste ano, em vez de vir para casa foi direto para uma boca de fumo. Voltou a delinquir no mesmo dia e só parou novamente após ser preso acusado de ser estuprador das meninas.
O pai diz saber que o filho se envolveu com gente errada e afirma que o mesmo tem de pagar caso seja comprovado que está no meio dos que estupraram e tentaram matar as meninas. Diz não se preocupar muito nem se impressionar com o que pode ocorrer com o filho. “Senão não durmo. Os remédios controlados que tomo não resolvem se eu me preocupar”. Mas confessa que tem medo de boatos. Alguns deles, espalhados e repetidos na cidade, dão conta de que os adolescentes acusados foram esfaqueados na prisão em Teresina.
Seu Manoel passa o dia em casa, cuidando dos filhos. Ele guarda com carinho um álbum com fotos de quando I.V.I. era criança. Sobraram nove fotos. Outras foram destruídas em ataques de fúria. Em uma delas há um recorte na cabeça do pai. “Ele fez isso dizendo que era meu chifre. Só Deus para ajeitar tudo isso e ajeitar esse menino”, finalizou.
MÃE DEPRESSIVA, IRMÃO REVOLTADO
B.F.O. é o mais novo dos quatro adolescentes acusados de terem cometido um dos crimes mais chocantes da história do Piauí. Também é o menor em tamanho e, ao menos visualmente, é confundido facilmente com uma criança.
Franzino e quase raquítico, dividia um dos quatro cômodos da pequena casa do conjunto Vila Nova, também na periferia de Castelo do Piauí, com o irmão de 16 anos, e a irmã, de 14 anos. Mora também com a mãe, a dona de casa Cristiane Maria Fernandes, 40 anos, e o pai, o vendedor de peixes e galinhas, José Márcio Oliveira.
Ele reside ali há pouco tempo, desde outubro de 2014. A casa, localizada em uma rua sem pavimentação e sem saída, foi dada à família, muito pobre, em um dos programas assistenciais do governo. Também recebem o Bolsa Família, principal renda da casa. Há poucos utensílios domésticos e o único eletrodoméstico é um rádio. Mesmo muito pequena tem muito espaço sobrando. O único utensílio grande é um guarda roupa bem castigado pelo tempo e uso.
B.F.O. só virou cidadão brasileiro de verdade quase dois anos depois. Nasceu em 21 de janeiro de 2000, mas só obteve certidão de nascimento em 31 de outubro de 2001.
Depois do crime, dona Cristiane passa o dia na porta de casa. Suas únicas companhias são três cachorras (uma delas muito valente e outra muito simpática) criadas pela família. Ela, que sofre de depressão há quase 15 anos (inclusive com internações no hospital psiquiátrico Areolino de Abreu, em Teresina) chora e se entristece. É dependente de três tipos de medicamentos psiquiátricos. Ainda não viu o filho após a prisão.
De todos os parentes entrevistados dos quatro adolescentes acusados pelo crime Cristiane Fernandes é a única a dizer que tem certeza absoluta que o filho é inocente.
Ela admite que o filho parou de estudar na 5ª série. “Ele não queria ir mais”, comentou, sobre o fato de B.F.O. não frequentar a escola e passar o dia ocioso. “Ele gostava de sair”. A mãe também diz que não sabia que o filho tinha sido preso outras vezes e que respondia a vários crimes, inclusive o espancamento e assalto a um idoso.
No momento da entrevista com dona Cristiane Fernandes, o irmão do adolescente chegou à residência. Ele diz que algumas pessoas da cidade o confundem com o irmão. Visivelmente irritado também acha que o irmão é inocente. “Ele fazia era dispensar as meninas que queriam ficar com ele. Então por que iria fazer isso?”, indagou.
A mãe de B.F.O. diz temer vingança com a família. Ela lembra que nunca tirou uma foto com o filho e também que nunca soube do envolvimento do filho com entorpecentes.
DROGAS E VERGONHA DO PAI
O adolescente J.S.R, 16 anos, nas últimas semanas estava trabalhando. Fazia bicos de operário braçal na construção da casa de um dos vereadores de Castelo do Piauí. Passava parte do tempo no trabalho e outra parte consumindo drogas lícitas, principalmente cachaça, e também drogas ilícitas.
O emprego era uma chance dada pelo político como incentivo para o rapaz sair da vida da criminalidade.
Ele foi o primeiro a ser preso justamente por voltar com sinais de estar drogado, com roupa suja e calça manchada de sangue.
A mãe de J.S.R., a dona de casa Ana Maria Rodrigues, teve de se mudar de casa por ameaças. Ela morava sozinha com o adolescente em um casebre nas proximidades de uma lagoa do bairro Cohab. Somente um cachorro e algumas roupas estendidas há dias no sol denunciavam que alguém habitava o cubículo, feito de taipa. O lugar estava fechado a corrente. De todas as casas dos quatro acusados, é a menor e a mais simples.
Os vizinhos limitam-se a observar e a fazer especulações. Muitos deles passam o dia na porta observando a movimentação de pessoas na casa.
Ana Maria estava separada do pai do garoto desde o final do ano passado. Ela não consegue falar sobre o caso. Perguntada sobre o que acha de tudo isso, começou a ficar nervosa e a soluçar.
O pedreiro Francisco Antônio Jerônimo, 40 anos, mora com a mãe, no Centro de Castelo do Piauí. Eram nítidas as expressões de vergonha que estava sentindo pelo ato que o filho é acusado. Ele diz que a família está toda abalada, mas que compreende que sofrimento maior é o das famílias das meninas. “O crime é imperdoável”, frisou o pai.
Perguntado se acha que o filho tem algo a ver com o brutal crime relatou que há testemunhas que dizem que J.S.R., no momento do ocorrido, estava juntando estacas. “Ele andava junto sim com os outros, mas de uns dias para cá eles estavam brigados”, revelou o pedreiro.
Francisco Jerônimo confirma que J.S.R. era usuário de drogas e já tinha sido preso algumas vezes.
Mas a principal revelação do pai do garoto é que sabe que se ele retornar à Castelo do Piauí será morto. “A cidade quer fazer isso. Se ele fez, que coma o pepino sozinho. A gente não apoia. Se errou tem de pagar o pato”, sentenciou.
Assim como os outros garotos os familiares de J.S.R. ainda não o visitaram em Teresina. A mãe alega condições financeiras e o pai disse que não quer ver o garoto.
O lugar em que as meninas foram atacadas virou ponto de peregrinação. Mais de 200 pessoas visitam diariamente o lugar. Muitos procuram pertences, outros especulam e quase a maioria quer vingança.
E NESTA QUINTA-FEIRA em O Olho – a segunda parte da reportagem: como realmente ocorreu o caso? Respostas e versões do passo a passo sobre o episódio que mudou para sempre a história de Castelo do Piauí e revoltou todo o estado.
* Orlando Berti é jornalista. Atualmente é professor, pesquisador e extensionista do curso de Comunicação Social – Jornalismo – da UESPI – Universidade Estadual do Piauí (campus de Teresina). É mestre e doutor em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (com doutorado-sanduíche na Universidad de Málaga – Espanha). Faz Pós-doutorado em Comunicação, Região e Cidadania na Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente desenvolve pesquisa de etnografia das redações, tentando entender o jornalismo piauiense na prática e os fenômenos sociais contemporâneos. É vice-presidente da Rede Brasileira de Mídia Cidadã.
** João Brito Júnior é jornalista. Há mais de dez anos atua como fotojornalista. Tem experiência em veículos de comunicação do Piauí e de outros estados (como o jornal Folha de São Paulo). Atua como fotojornalista free lancer de várias publicações nacionais e internacionais. Tem dezenas de trabalhos autorais expostos dentro e fora do Brasil. Atualmente é editor de Fotografia do O Olho.
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