Ilda Angélica Correia era uma jovem casada e prestes a se tornar mãe, quando decidiu entrar para o primeiro programa de Agente Comunitário de Saúde (ACS) do país, inaugurado no Ceará. Em 32 anos de atuação vivenciou situações que transformaram a atuação como ACS no propósito de sua vida
O trabalho de Agente Comunitário de Saúde (ACS) entrou em minha vida quando o programa foi inaugurado no Brasil há 32 anos no estado do Ceará. Foi uma iniciativa do então governador Tasso Jereissati e oferecia para os que trabalhassem no projeto, uma bolsa mensal no valor de meio salário-mínimo. Essa bolsa demorou meses para chegar e muitos de nós, em minha região, inicialmente, trabalhamos de modo voluntário.
Eu morava em Maracanaú, na época um distrito de Maranguape. Já era casada e estava grávida do meu primeiro filho. Desde bem jovem sempre fui muito atenta e ativa na comunidade em relação a suas carências. Fundei grêmios estudantis, participei do movimento para melhorar o sistema de transporte e possibilitar o acesso dos estudantes a escola que ficava em Maranguape. Em Maracanaú só tínhamos escola até a 4ª série. Também não tínhamos posto de saúde ou médico para atender os moradores.
Portanto, mesmo antes de me tornar ACS, eu sempre estive envolvida em movimentos sociais. Quando veio a oportunidade de participar do programa de Agente Comunitário de Saúde, eu logo fiquei interessada. Para fazer parte, bastava realizar uma prova e não era exigida qualquer escolaridade dos candidatos, apenas que soubessem ler e escrever. Eu já cursava o Ensino Médio, mas havia muitas pessoas que mal eram alfabetizadas entre os candidatos.
“O desafio era conquistar a confiança da comunidade”
Depois de passar na prova eu os demais aprovados fizemos um treinamento que considerei muito bom. Em três meses, aprendemos desde como se comportar no atendimento às famílias até temas como calendário vacinal, saúde bucal, gravidez, pré-natal, direitos da gestante. Por sinal, em relação a comportamento, o ACS precisava ser exemplar porque o desafio era conquistar a confiança da comunidade, principalmente, das mães que eram as responsáveis pelos cuidados com a família.
Em relação às crianças, a situação era complicada. Havia falta de água e de conscientização sobre a importância dos hábitos de higiene para prevenir doenças. Muitas vezes, as crianças dormiam sem tomar banho e o piolho era comum nos pequenos.
Lembro que recebemos um kit com o pente para tirar o piolho. Nós ensinávamos as mães a pentear o cabelo dos filhos e tirar os piolhos. Conscientizávamos sobre a necessidade de escovar os dentes das crianças e ensinávamos como fazer. Tínhamos uma tesourinha de cortar unha e começamos mostrar que era importante manter a unha cortada e limpa para evitar vermes. Era um tempo em que o ACS colocava mesmo a mão na massa com a população e fazíamos isso com prazer.
“A mãe já sem esperanças, rezava, aguardando a morte do filha”
E nesse colocar a mão na massa, logo no início de meu trabalho como ACS, vivenciei uma situação muito marcante e que consolidou ainda mais em mim a certeza de que nasci para esse trabalho. Cheguei na casa de uma mãe muito carente. Ela morava em uma habitação de taipa e a família era grande, com muitos filhos. Um deles, uma menina ainda bebê, estava deitada em uma rede, com diarreia e muito abatida.
A mãe já sem esperanças, rezava, aguardando a morte do filha. Era uma cena muito triste. Passei o dia com essa família, introduzi o soro caseiro como tratamento do bebê, conforme eu havia sido instruída no treinamento. Foi lindo ver que depois de algumas horas de soro caseiro, o menina começou a melhorar. Quando fui embora no final da tarde, ela já estava sorrindo. Orientei a mãe a continuar com o soro.
Na primeira reunião que fizemos na comunidade depois desse episódio, a mãe estava lá e deu seu testemunho sobre como o soro caseiro havia salvado sua filha. Hoje essa menina da qual sou madrinha, cresceu e já é mãe. Depois desse caso, passei a administrar o soro caseiro em crianças com diarreia, ensinar as mães, que se tornaram multiplicadoras do tratamento na comunidade.
“ O estado do Ceará apresentava um índice muito grande de mortalidade infantil”
Naquela ocasião, em que foi iniciado o Programa Agentes Comunitários de Saúde, o estado do Ceará apresentava um índice muito grande de mortalidade infantil. Com a atuação dos ACS que abraçaram o desafio com muito afinco, houve uma redução drástica desse índice e os governos começaram a ser reconhecidos por um trabalho que estava sendo realizado por nós que nem éramos profissionais tão valorizados assim pelo poder público. Mas os governos ganharam prêmios, inclusive, internacionais.
Em uma ocasião os ACS lotaram o Centro de Convenções do Ceará para assistir a cerimônia de entrega de uma premiação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) ao governo do estado pela diminuição dos índices de mortalidade infantil. Momentos como esse contribuíram para que os ACS percebessem o quanto seu trabalho era importante para a população mais carente.
“Um ato simples como dar o soro caseiro pode garantir a vida de uma criança”
Nós trabalhamos com a vida e muitas vezes não precisa de nada muito complicado, um ato simples como dar o soro caseiro pode garantir a vida de uma criança. As vezes eu me pego pensando sobre quantas crianças que eu ajudei a manter viva com esse recurso simples. Muitas delas fizeram faculdade, conseguiram se colocar no mercado de trabalho, formaram famílias, são pais e mães, e poderiam não estar vivos se eu ou outro companheiro ACS não tivesse atuado em prol de sua saúde. Essa realidade vale para o Ceará e todo o Brasil.
A consciência do valor de nosso trabalho nos levou a querer nos organizar para garantir a continuidade de nossa atuação, independentemente de quem estivesse no governo. Criamos a Associação dos Agentes de Saúde de Maracanaú, uma das primeiras. Alguns anos depois, veio a Federação do Estado do Ceará. Mesmo participando ativamente da Associação, Federação e, depois da Confederação Nacional dos Agentes de Saúde (CONACS), eu nunca quis assumir o cargo de presidente. Eu participava como diretora. Eu entendia ser uma responsabilidade muito grande e que eu ficaria muito ausente da vida de minha família – meus três filhos e marido. Mesmo assim, para poder me dedicar como ACS ou no cargo de diretora, contei com o apoio de minha mãe. Sou muito grata a ela por ter cuidado de meus filhos enquanto eu trabalhava.
“Dei mais um passo em minha participação ao ser eleita presidente da CONACS”
Somente em 2016, com os filhos já adultos, é que dei mais um passo em minha participação ao ser eleita presidente da CONACS. Antes disso, fui vice-presidente em dois mandatos anteriores. Como presidente do CONACS, trabalhei pela fundação de sindicatos porque em meu entendimento, as associações já haviam cumprido um papel importante e era o momento de dar um passo adiante.
De quando comecei meu trabalho como ACS até hoje, nossa profissão teve uma evolução gigante, mas também algumas perdas. Em alguns aspectos, o programa foi se descaracterizando, fugindo daquilo que de fato é o papel do ACS. Hoje estamos atuando mais como recenseadores do que educadores de saúde e vejo isso com tristeza.
“Foram os ACS que no passado convenceram a população dos benefícios das vacinas”
Em minha opinião, na medida em que buscamos os justos e necessários direitos trabalhista, o patrão também foi fazendo suas exigências. É fato que a sociedade também mudou e que nossa forma de atuar precisa acompanhar as mudanças, mas lamento que estejamos nos afastando muito de nosso papel de educador em saúde. Foi por meio da educação das famílias que conseguimos erradicar muitas doenças que hoje estão voltando porque as pessoas não estão se vacinando. E foram os ACS que no passado convenceram a população dos benefícios das vacinas.
Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, eu tenho certeza de que se nós tivéssemos sido utilizados de maneira efetiva e responsável, a doença não teria tido essa dimensão que teve no Brasil. Bastava ter preparado e protegido os ACS para enfrentar a doença no front, mas os governos nos deixaram de fora dessa guerra. Eles focaram em hospitais, respiradores, médicos, enfermeiros e tudo isso foi importantíssimo, mas esqueceram do grande exercito do Sistema Único de Saúde (SUS), formado pelos ACS que sabem fazer o trabalho de prevenção.
“Tenho orgulho de dizer que somos os únicos profissionais exclusivos do SUS”
Claro que também tivemos ganhos ao longo de todos esses anos. Soubemos nos organizar para transformar uma atividade de um programa em uma profissão. Hoje tenho orgulho de dizer que somos os únicos profissionais exclusivos do SUS. Não existe SUS sem o ACS.
Para quem tem planos de ser ACS, eu digo que, primeiramente, é preciso refletir sobre a vocação para o trabalho. É preciso gostar de cuidar de gente, trabalhar com o ser humano. É preciso saber ouvir as pessoas porque muitas vezes é isso o que mais precisam. Em minha trajetória, vivi muito isso com as mãezinhas. Elas precisavam desabafar. Eu chegava nas casas e encontrava mães depressivas, estressadas e quando contavam com minha escuta e acolhimento, melhoravam, ficavam mais tranquilas e seguras.
O ACS vocacionado, chega, senta e ouve e, desse modo, consegue diagnosticar varias coisas. As vezes é o desemprego, o filho que está entrando nas drogas, o marido que espanca, entre tantos outros problemas sociais que impactam na saúde física e mental da pessoas.
“Tenho orgulho de ter feito essa escolha”
Como ACS, aprendi e cresci muito. Esse trabalho fez de mim uma mulher mais forte, decidida e tenho orgulho de ter feito essa escolha. Hoje estou presidente do CONACs e estou entregando o máximo a essa função para dar resposta a minha categoria, que hoje é composta por cerca 400 mil profissionais.
Sou muito grata pelo aprendizado que o trabalho como ACS desde 1991 me proporcionou. Eu respiro, durmo, sonho e acordo ACS todos os dias. Esse é o propósito de minha vida.
Via : A casa dos Agentes
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